15/01/2024, 0:00 h
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OPINIÃO
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Tinha a janela da sala fechada, as persianas descidas até ao fundo, as lâmpadas apagadas e as pálpebras a espremerem os olhos numa atitude voluntária de recusa da luz. Mas, mesmo assim, eu via. Não ver no sentido de olhar à minha volta e descortinar as formas das coisas, das pessoas ou dos animais, mas ver como se estivesse presente onde a vida acontecia. Eram sons que me chegavam, ora vibrantes ora quase emudecidos, por vezes serenos, e me penetravam no cérebro desperto. Não dispunha da mínima vontade de me elevar do sofá e espreitar pela janela a confirmar o que se passava, mas algo mexia comigo, me puxava para a descoberta.
Não faço a mínima ideia das horas, se era já noite ou ainda dia, o que sei é que, ao chegar a casa, me sentia demasiado cansado e esqueci no sofá o corpo dorido. Só o latir constante dos cães da vizinhança me despertou do letargo, me pôs alerta. Algum ladrão poderia andar por ali a estudar o acesso às coisas alheias, a preparar-se para um assalto, e a casa visada poderia ser a minha. Pus-me à escuta. A algazarra ia-se aproximando, como uma trovoada indecisa que se formara nas lonjuras, e o meu coração batia mais depressa num ribombar que me complicava a escuta. Respirei fundo. Coloquei uma das orelhas virada para o lado da janela, a tentar destrinçar os movimentos; e eles aproximavam-se, arrastando presságios malditos. Poderia levantar-me, acender a luz, abrir a porta ou a janela e espreitar para o exterior para testemunhar o que por lá ia, mas esse gesto iria denunciar-me a presença, poderia mesmo passar a testemunha dum crime que estava a acontecer. Na pior das hipóteses, poderia mesmo ser brindado com um tiro entre os dois olhos, com uma rajada de metralhadora disparada sem aviso, e quem me valeria? Este tipo de desgraças está sempre a acontecer, pois os bandidos acham que o que fazem não diz respeito a simples testemunhas.
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Apurei o sentido, o único que me encontrava capaz de usar sem que outros ousassem desconfiar da minha presença: troquei a orelha da escuta. Os cães rosnavam, emitiam os sons circulares duma matilha de caça a rodear a presa, talvez um javali, ou um lobo; mas isso não era possível porque ali por perto não existiam bichos dessa espécie; e se existissem haveriam de dar luta, e grunhir alto, e guinchar a intimidar os atacantes, todavia só os latidos se faziam ouvir. Os sons sinistros cresciam, arrastavam formas, embora diluídas, e eu ia vendo mais nítido, ia distinguindo as sombras, depois os vultos, e começava a arrepiar-me com as imagens que me preenchiam o cérebro em alerta máximo. Uma voz sumida suplicava, perdendo energia: «xô! Ide embora! Deixai-me em paz! Socorro!». E eu visualizei um homem, maltrapilho, desgraçado sem teto, à procura dum recanto que lhe desse algum conforto, e o pau que trazia na mão não estava a ser suficiente para afastar os atacantes.
…
No escuro, ainda atordoado do sono, um único sentido bastou-me para perceber que o outro precisava de ajuda urgente para sobreviver. Estaria ele a pedir demasiado?
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