28/04/2023, 0:00 h
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OPINIÃO
Joaquim Leal
É Páscoa. Retinem campainhas, estoiram foguetes, pessoas aglomeram-se à entrada das casas, ao lado de chãos floridos, a aguardar a visita dum Senhor. Alguns impacientam-se: “nunca mais chega o senhor abade nem o sacristão”. Apesar disso, poucos se atrevem a retirar o folar do envelope, a mostrar descontentamento.
Seguem uns, outros aguardam e eu reclamo, porque o que eu queria mesmo era passar o dia na praia e dar um mergulho. Mas não posso. Consta que Esse, por quem todos esperam à porta das casas, ao lado de flores que enfeitam o chão, resolveu abrir o mar, parti-lo em dois, para que o seu povo pudesse atravessá-lo de pé enxuto.
Não sei se isso foi na Foz ou na Póvoa de Varzim, ou noutro lado qualquer, porque as notícias tardam a chegar, e nenhum canal televisivo é suficientemente fidedigno para que se possa aceitar a informação sem questionar. Na dúvida, recuso-me a fazer a viagem, a ir à praia e encontrá-la partida em duas, a ser obrigado a optar por um dos lados, pois nenhum deles me agrada, mas sim o todo.
Garantem-me que Esse tal, por quem as pessoas esperam à entrada das casas lavadas de fresco, com flores e verduras espalhadas pelo chão, é um milagreiro, que foi capaz de transformar água em vinho e mil pães a partir de um só.
Talvez por isso, movidas pela ideia de abundância, as pessoas bebam tanto neste dia e comam doces muito acima do normal. Afinal, com o milagre da multiplicação, é fácil desforrarem-se dos dias de aperto, das refeições feitas de arroz cozido sem nada a acompanhar.
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Entretanto eu, de barriga cheia, deliciado pelos doces brancos, pudim e pão de ló, tudo bem regado com vinho fino transmontano, não me conformo, porque o que eu desejo realmente é ir à praia e dar um mergulho no mar.
Acercam-se sons de campainhas e foguetes, e uma voz desgastada pela fadiga anuncia a ressurreição de Aquele que deu a vida pela humanidade e que logrou fugir da morte. “Alegrem-se os povos”, proclamam. Todavia, o que exibem não é um homem feliz de ter escapado dum túmulo, mas um jovem de rosto sofredor pregado numa cruz.
E eu, convencido da minha mais absoluta incapacidade para decidir sobre a verdade de tudo isto, enervo-me com as campainhas, com os foguetes e com as pessoas à porta das casas onde há flores e verduras espalhadas pelo chão, e concentro-me num único desejo: ir à praia e dar um mergulho no mar.
Joaquim António Leal
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