BREVE ESCRITO PÓSTUMO

Era como se fosse um vizinho do condomínio. Era um vizinho simpático, cordato, de falas contidas e respeitosas.

Percorríamos quase os mesmos lugares, partindo de origens diferentes e porventura com destinos diferentes. Cruzei-me portanto com ele algumas vezes, não tantas quanto um relacionamento mais completo exigiria.

Desfeita alguma desconfiança inicial, percebi que, embora percorresse um mundo para mim algo distante, havia uma ponte que nos poderia unir, um território comum de ideias e afetos que nos influenciava.

Com o decorrer dos tempos, sobreveio-lhe (sinto) uma exigência de um compromisso sério, uma atitude comprometida com o geral, sem descurar o particular, uma sabedoria que não era só escolástica mas que se afirmava existencial.

Acompanhei-lhe, grato e atento, a evolução. E mesmo o tempo final de vida parecia ainda apurar a sua visão.

Na sua voz surgiam avisos e conselhos, julgados como dardos atirados para alvos certos, mesmo com uma sua fragilidade superada pelo esforço forte de concentração e perícia.

Afrontou (ele sabia-o, mais que todos!) a hipocrisia, a mentira, a intolerância dos falsos, dos fariseus, sempre prontos a vender alma própria e dos demais por trinta dinheiros.

Era (disse-o já) meu vizinho do condomínio, deste condomínio em que todos nós habitamos.

Era líder espiritual de uma igreja que me interroga persistentemente quer apareça como espaço de afirmação, crescimento interior e reconstrução, quer surja como promotor de rituais, quer (pior, muito pior!), se mostre como dilema de alienação.

Lamento a sua perda. Far-me-á falta. Far-nos-á falta.

O seu legado não é irreversível. Sim, este capitalismo mata. Sim, este capitalismo tem uma ética sem valores. Sim, este capitalismo é desumano.

Mas as palavras sensibilizam consciências, mas não movem, por si só, vontades.

ASSINE A GAZETA DE PAÇOS DE FERREIRA