Por
Gazeta Paços de Ferreira

28/06/2021, 23:05 h

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Só sei ser feliz se for por inteiro

Cultura

Acho que nasci com uma falha qualquer no meu código genético. 
Nunca me senti como os outros. 
Nunca amei como os outros.
Nunca fiz nada como os outros.
Sempre fui eu em excesso e isso dá cabo de mim. O tempo todo.
É como se tivesse caído de paraquedas, por acaso, neste lugar. Onde não escolhi nascer, onde não escolhi viver, e onde nunca me perguntaram «és feliz?».
A maioria das pessoas encontra alguém, gosta assim-assim, arranja um trabalho só pelo dinheiro, tem dois ou três filhos porque ter filhos é a cena mais natural do mundo, e acomoda-se com a vida que tem. E eu pergunto-me, constantemente, como é que a maioria das pessoas se acomoda com a ideia absurda de que é feliz? Como é que dão a mão a alguém na rua se deixam o coração noutro peito qualquer? Como é que se deitam na cama com alguém se deixam a alma noutra cama que não aquela? Eu nunca vou contentar-me em viver uma vida meia vazia ou beber de um copo meio cheio. Se não for para morrer de amor verdadeiro, prefiro não morrer de amor algum, prefiro não beijar boca que seja, deixar-me dormir num corpo qualquer, ou acomodar-me no colo de alguém só porque os anos passam e corro o risco de ficar sozinha. Eu tive a sorte de descobrir um amor. Que me enche. Que me transborda. Mas se não tivesse sido marcada pelo cupido, preferia dormir todas as noites com a ausência do homem que sonhei do que com um homem que só preencheria o outro lado da cama, mas, jamais, a minha alma.
Eu nunca me vou contentar com isso. Nunca vou aceitar menos do que aquilo em que acredito.
E isso tem-me torturado por noites sem fim.
As manhãs são uma porcaria. 
As pessoas são falsas, desleais e sorriem o tempo todo como se sorrir apagasse a miséria em que vivem, ou a podridão em que a alma delas se encontra. Mas não.
Eu não consigo sentir-me bem se tenho o peito a mil à hora e a alma feita em pedaços.
Tenho tantas cicatrizes. 
De amores. De sonhos. De amizades. De trabalhos assim-assim. 
De coisas que nunca me encheram. 
Cicatrizes que me atravessam o corpo de uma ponta à outra. 
Cicatrizes de feridas, que num dia como outro qualquer se abrem e sangram até que eu caia no chão e me sinta derrotada. Mas não sou derrotada. Só sou incompreendida.
Já vivi mais vidas numa vida só do que todas as pessoas que me rodeiam.
Só sei ser feliz se for por inteiro. Não sei viver confortável ou em paz se não for por inteiro.
E a ideia de me acomodar agora, amanhã, ou para o resto da vida, com coisas que só me preencham pela metade, ou me satisfaçam por meia dúzia de meses, mata-me. 
O simples ato de ponderar abrir mão do excesso faz com que prefira a morte a qualquer resquício de vida.
Não quero acordar aos oitenta anos com as pernas fracas, os cabelos brancos e as rugas na pele, totalmente vazias. Eu quero que os anos passem por mim e me marquem, ao ponto de ter histórias para os meus filhos, e para os netos, e para os netos dos meus filhos. 
É que ser uma pessoa de excessos, se é uma bênção para alguns é uma maldição para outros.
É acordar dia após dia com a sensação de que falta algo, de que o mundo é triste e de que ninguém nos valoriza, ou reconhece os esforços que fazemos por vivermos uma vida igual a tantas outras.
É tudo ou nada. É fogo ou gelo.
É carne ou ossos. É dia ou noite.
É amor ou ódio.
Se não for para viver no limite, na corda fina e frágil que é a vida, com o coração a bater pela arte, então é melhor cavar a cova e deixarmo-nos enterrar, porque viver vazios já é morrer.


Letícia Brito

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