09/12/2021, 0:00 h
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Quando o nosso presidente Marcelo Rebelo de Sousa lançou sobre a Assembleia da República o fantasma da dissolução, caso o orçamento do estado não progredisse o caminho da aprovação, os vários partidos olharam para este fantasma, não como uma ameaça, mas como uma oportunidade ou como um presente merecedor de ser colocado bem no centro da sala do parlamento. Apesar dos esforços finais de Marcelo, toda a assembleia decidiu colocar todas as fichas do tabuleiro neste novo cavalo de Tróia chamado: eleições legislativas antecipadas. De dentro deste cavalo, ainda não sabemos o que sairá, mas como o povo é sereno, vamos aguardar pela noite de 30 de janeiro do próximo ano. E diga-se, um dia de má memória, o dia em que Adolf Hitler foi eleito chanceler alemão… Mas enquanto não chega esse dia peço que recuar até aos tempos da Eneida de Virgílio, para encontrar um personagem em tudo similar a Marcelo na sua guerra pelo orçamento. Falo de Laocoonte, sacerdote troiano.
Quando os helenos fugiram e deixaram o famoso cavalo de madeira como presente para Tróia, Laoconte ficou extremamente intrigado e desconfiado, e rapidamente presumiu que aquele presente seria um péssimo augúrio para os troianos. Desencadeou então várias diligências para alertar os troianos para o perigo daquele cavalo, mas ninguém o escutou. Chegou a pedir aos deuses que fizessem os troianos escutar a sua mensagem, mas nada… Já em desespero atirou uma lança contra o cavalo, mas o resultado final foi precisamente o oposto, os troianos colocaram o cavalo dentro das muralhas e festejaram a presumível vitória sobre o inimigo. Aos troianos o destino trouxe um ataque sorrateiro dos gregos que saíram do cavalo, e a Laocoonte e aos seus dois filhos, Antífantes e Timbreu, o destino chocou contra um deus Poseidon aborrecido com a atitude do sacerdote, e decidiu enviar-lhe serpentes para os devorar.
Esta cena final da vida de Laocoonte foi magistralmente representada numa escultura datada no séc. I A.C. que está presente no Museu do Vaticano, e tem uma curiosa histórica. Esta peça artística esteve perdida durante muitos séculos, e foi reencontrada em Roma no ano 1506. Sendo uma escultura da era Clássica, ao ser encontrada no Renascimento, tornou-se numa representação dum valor universal grandioso. Contudo a representação de Laocoonte foi encontrada sem o braço direito. Conta-se que o Papa Júlio II, após adquirir esta valiosa peça de arte, organizou um concurso informal, para que se restaurasse o braço direito. Surgiram duas propostas para o restauro, uma liderada por Michelangelo e outra por Rafael. Michaelangelo sugeriu que o braço estivesse dobrado sobre as costas num acto de sofrimento, enquanto Rafael interpretou a peça com Laocoonte de braço estendido, em posição heróica no momento do seu martírio. Venceu esta última tese, e foi assim que restauraram a estátua do sacerdote troiano. Mas em 1906, um arqueólogo e coleccionador de arte, Ludwig Pollak, adquiriu em Roma um braço de mármore, e reconheceu-o como sendo o braço de Laocoonte. De seguida apresentou-o no Vaticano para avaliação. De facto tratava-se do braço original, mas apenas em 1957 foi recolocado na peça e assim permanece até hoje. Afinal, apesar do Michaelangelo ter perdido o concurso, a posição correcta do braço era a visão prevista pelo autor dos afrescos da Capela Sistina!
Fechando com a temática inicial, o nosso ‘sacerdote’ de Bélem, Marcelo Rebelo de Sousa, tal como Laocoonte não foi escutado, e algo recheado de incertezas entrou no forte da democracia. O que sairá de lá ainda não sabemos, mas esperemos que a estátua da democracia continue com um braço bem levantado segurando na mão o cravo da liberdade em pose heróica, como a visão de Rafael, e que ninguém desenterre do século passado um braço erguido de mão esticada, devorando como uma cobra as liberdades, igualdades e direitos universais!
Ricardo Jorge Neto
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