19/10/2024, 0:00 h
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Cultura Opinião Abílio Travessas
CULTURA
Por Abílio Travessas (Colunista e Professor aposentado)
O Portugal que conheci na minha infância e juventude, anos cinquenta e sessenta, era pobre, burocrático, mesquinho e fechado nas suas modestas fronteiras continentais. A autoridade não se questionava ("Não discutimos a autoridade e o seu prestígio...", dizia Salazar num dos seus discursos) e exercia-se com violência e medo: ainda hoje sinto um medo inexplicável e irracional perante as forças policiais.
Em meados dos anos oitenta, num Agosto a ver o mar, o amigo Nuno, o irmão e eu resolvemos, num domingo sem a terrível "nortada", fazer um passeio de bicicleta até Viana, em plenas festas da Srª da Agonia, uma das grandes procissões do norte de Portugal, a par da Srª da Assunção, padroeira dos pescadores da minha Póvoa.
Partimos pelo fresco e, em chegados à Princesa do Lima, encostámos as bicicletas, de estrada e de montanha - que começavam a estar na moda - no passeio que ladeava o café onde nos sentáramos a retemperar forças. Eis que surge um polícia, no outro lado da rua, mirando e remirando com ar inquisidor as nossas "montadas"; e lá se resolveu a interromper-nos o descanso e o deleite com a paisagem do rio e da velha ponte de ferro, com curvas!, do engenheiro francês G. Eiffel, perguntando-nos pelos documentos e chapas identificadoras dos velocípedes. Apesar do nosso espanto e veementes protestos pelas exigências burocráticas deslocadas no tempo, o zeloso agente levou-nos para a esquadra, à distância de umas boas centenas de metros. Também era obrigatório a carta de condução com exame na Câmara Municipal.
Ao aproximarmo-nos da esquadra, dá-se um "golpe de teatro" que altera radicalmente a situação: dois jovens, talvez carteiristas, num intervalo de segundos, fugiam da prisão onde tinham passado a noite, aproveitando momentânea distracção e para surpresa do plantão e do polícia que nos custodiava.
Após um primeiro momento de espanto e de inacção, os dois guardas esqueceram missões imediatas e puseram-se no encalço dos meliantes, deixando-nos ali, estuporados, frente à esquadra, a rir desalmadamente perante o ridículo e insólito espectáculo, antes de montarmos as bicicletas e pedalarmos, furiosamente, para bem longe do local do crime.
Esta "estória" é paradigmática e bem elucidativa da herança persistente dos tempos repressivos do Estado Novo, velho e requentado no seu estertor final. A débil formação cultural e cívica das forças policiais reflectia-se nestes comportamentos persecutórios de actividades físicas que deviam ser incentivadas, mas que eram, ainda, reprimidas, porque a bicicleta trazia consigo uma memória associada ao trabalho e aos mais desfavorecidos.
Esta repressão e perseguição está bem documentada na Licença para Condução de Velocípedes, passada pela Secretaria da CM da Póvoa de Varzim, 2ª via, de 7 de Maio de 1979 de que necessitei para conduzir motorizada até 50cc. A minúcia na descrição das infracções e respectivas multas é elucidativa:
12) Usa uma buzina ou campainha de som agudo, mas só a deves usar em caso de necessidade para a segurança do trânsito, mas nunca para chamares as pessoas, como é hábito (mau hábito) do padeiro, do azeiteiro ou do correio - 100$00. O tratamento por "tu" do titular da licença leva-nos a questionar se o condutor de automóvel teria o mesmo tratamento tão "afectuoso". ...
A imagem transmitida era dum mundo idílico e ideal, mas a realidade era outra: 18) Se tens filhos menores de 12 anos, não os deixes andar na bicicleta nas estradas nacionais; (o que me impediria de frequentar o Liceu da Póvoa, distante 3 km, que tornava obrigatório o uso da bicicleta, dada a inexistência de transportes públicos) só poderão conduzir em jardins ou parques públicos e bem assim em locais vedados ao trânsito, pois serás multado em 200$00.
Mas há outras disposições reveladoras das condições sócio-económicas daquele Portugal: 4) Nunca dês boleia, nem leves a mulher na bicicleta - 200$00. Além de multa é apreendida a carta e o velocípede. Era vulgar o transporte da mulher no quadro da bicicleta, além do filho, que se sentava no "suporte" colocado na parte de trás e usado, habitualmente, para mercadorias e utensílios de trabalho.
A bicicleta era o meio mais utilizado pela grande maioria dos portugueses e só alguns, na minha aldeia, possuíam carro: o médico, alguns merceeiros e proprietários abastados, sendo sinal de poder e posição social. Como são diferentes os tempos actuais em que o carro é primeira prioridade e o uso da bicicleta, nas deslocações, caiu praticamente em desuso, com as consequências que se conhecem para o ambiente e não só... É necessário revitalizar o seu uso, mas a insegurança nas estradas, em que o desrespeito pelo ciclista impera, não augura grande futuro. As pistas para as bicicletas são uma boa alternativa e já existem em países com outra sensibilidade perante estas realidades. No nosso país, pelo contrário, a ditadura do automóvel levou à destruição, já nos anos oitenta (ou setenta?) da pista que existia entre Vila do Conde e o Porto.
As pistas para os ciclistas já são prioridade das autarquias sinal da mudança dos tempos, mas os passeios das cidades e vilas estão a ser invadidos pelas bicicletas e não só, pondo em perigo os indefesos peões.
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