06/07/2023, 0:00 h
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LITERATURA AÇORIANA
Aqueles encontros matinais enchiam-me as quartas-feiras de ânimo e o espírito de perguntas. Era inevitável, sempre que nos despedíamos e me dirigia ao carro, seguia em meditativo silêncio, de mente a transbordar questões, ideias e novas perspetivas sobre muitos dos assuntos que colocávamos na agenda, à medida que a naturalidade da conversa fluía, e isto sempre embalados pelo marulhar das ondas que nos vigiavam de perto.
É a confirmação da sabedoria paterna, que sempre me inculcou a ideia de que aprendemos muito mais com aqueles que sabem muito mais do que nós. La Palisse?, pois, de certo, mas, convenhamos, nem sempre é fácil interagir com uma mente brilhante como é a do meu amigo e, apenas a afeição que ele me dispensa, me permite estar à vontade, sem grandes receios de dizer uma qualquer banalidade
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Desta vez, partíamos em busca da discussão em torno do humor na literatura açoriana, e depois de aflorarmos os conceitos de sarcasmo e de ironia, assim como possíveis diferenças entre ambos, concluía o meu interlocutor que a ironia é sempre preferível ao sarcasmo, porque pede mais distância.
Animava a ideia acrescentando que o sarcástico se encontra demasiado envolvido e emotivo, com fúria e raiva. Já eu limitava-me a cuidar que era mais fácil apreciar a ironia do que o sarcasmo, já que a noção de sarcasmo implicaria uma ideia de confronto, veiculada num tom mais provocatório. Haveria uma “maldadezinha” por entre o discurso.
Já a ironia seria mais branda no seu propósito, teria um fim tendencialmente mais humorístico. Concordámos. Concluímos ainda que o tom inglês (de que ambos gostamos) é claramente mais irónico do que sarcástico.
Formulará o leitor as suas próprias impressões, enquanto me penitencio pela deriva ao assunto que nos trouxe a esta crónica: o humor na literatura açoriana.
O nome de José Martins Garcia caiu de chofre sobre a mesa daquele Snack-bar. Estranhei, porque dele, e por via de uma longínqua edição do “Concurso Nacional de Leitura” a que concorreram uns alunos, lera apenas O Medo, e, há uns anos, comprara Os Contos Infernais, todavia, não era pelo humor que me recordava destes títulos.
Convém acrescentar que o meu interlocutor é detentor de uma memória prodigiosa e, de súbito, lança, «Pátria», uma belíssima crónica de uma viagem entre França e Portugal, inserida no volume Receitas Para Fritar A Humanidade, para acrescentar logo depois que se referia a um texto revestido de um tom humorístico extraordinário, para além de um sentido crítico muito apurado, especialmente quando Martins Garcia se propôs mostrar idiossincrasias de franceses, espanhóis e portugueses.
Ao perceber o meu crescente interesse, elucidou-me, acrescentando tratar-se do relato de uma viagem de autocarro, feita pelo autor, desde Paris até Lisboa, sempre acompanhado por um conjunto de emigrantes que, à medida que avançavam os quilómetros, lá se iam revelando numa graça muito bem captada pelo autor açoriano.
Sem nada mais aditar, vejo-o a tomar notas, garantindo que me faria chegar o texto e o humor do autor que tão bem conhecera.
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Confesso que não tive tempo de abrir a porta de casa e já o telemóvel denunciava a diligência do meu amigo. Já se encontrava na minha caixa de correio eletrónico não apenas a sua simpatia e amizade, mas também uma digitalização do texto prometido, com direito a capa, contracapa, folha de dados e o desejo de umas boas gargalhadas.
Considerando que só se deve agradecer um livro após a sua leitura, e terminada horas depois a de «Pátria», coube-me agradecer-lhe o envio, mas fi-lo efusivamente, porque, para além de ter encontrado o humor que prometera, permitiu-me também uma agradabilíssima viagem no tempo, até às minhas raízes nortenhas.
Praticamente toda a minha família materna emigrou para França a partir da década de 60 do século passado e, enquanto não amealharam o suficiente para mercar um carrito, faziam a viagem de férias e de regresso à terra em furgonetas de passageiros, similares à icónica Volkswagen “Pão de Forma”.
Facto curioso, as condições descritas por eles a cada ano ganharam réplica ao longo da leitura do texto de Martins Garcia, pese embora a viagem dos meus fosse efetuada em modo “voo direto, sem direito a quaisquer transfers”.
Que maravilha. Assim que nos apercebíamos de que a carrinha do “Neca” - assim se chamava o senhor dos fretes - arribava, era uma algazarra em direção ao largo, mesmo ao cimo da nossa rua, e depois continuava em direção à casa da minha avó, onde ficavam instalados esses familiares.
Com a ingenuidade de uma meninice saudosa, ansiávamos que se tivessem lembrado de nós e nos trouxessem um binquedinho lá de França, se possível daqueles que não se viam por terras lusas, ou, em alternativa, alguma peça de roupa de uma qualquer marca conceituada: Adidas ou Le Coq Sportif estavam no topo da lista de preferências.
Esperávamos também que a generosidade deles se fizesse acompanhar de uns caramelos espanhóis, mas, para tal, foi-nos dito que era preciso que o Neca estivesse de boa catadura e parasse a furgoneta na cidade certa, no lado de lá da fronteira.
Estou convicto de que o sentimento que nos preenchia o coração nesses anos de infância, não há de ser muito diferente daquele sentido no espírito da criançada açoriana, assim que corria a notícia da chegada de um barril d’América. Hei de perguntar isso mesmo ao meu amigo, na próxima quarta-feira, ele que há de ter ouvido bastos relatos a propósito.
Da crónica de Martins Garcia nada mais acrescento, mas convido-vos a lê-la com especial atenção, é que, para além de umas valentes risadas, ainda vos pode calhar em sorte uma viagem no tempo, completamente “à pala” e sem um Neca para chatear!
Telmo R. Nunes
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