29/09/2023, 0:00 h
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CULTURA
Por Telmo Nunes (Colunista)
Cristóvão de Aguiar, Raiz Comovida, Ed. Afrontamento, 2015
Conquanto não possa invocar as “razões afetivas” que outros moveram até ao apelo à leitura, posso, todavia, concordar com esses quando o adjetivam de “magistral” e o classificam como uma “referência inestimável”, porque, em boa verdade, é disso mesmo que falamos.
Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, na ilha de São Miguel, onde iniciou a sua formação académica, tendo depois ingressado na Universidade de Coimbra, onde frequentou o Curso de Filologia Germânica, interrompido pela mobilização para a Guerra Colonial, tendo prestado serviço na Guiné. Finda essa campanha militar, regressa a Coimbra, terminando os seus estudos e encetando um período profícuo em termos literários e profissionais. Ao longo dos anos, ganhou diversos prémios, tendo sido agraciado com o grau de comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, pelo então Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.
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Sobre este autor, escreveu Luis Fagundes Duarte: “[…] o escritor que até hoje melhor conseguiu seguir os rastos daquela esteira de pó, desenhada pelos mortos e outras ausências, que define o percurso da tradição cultural que nos identifica como membros de uma comunidade - a comunidade açoriana.”
Atrevo-me a deixar um estímulo à leitura, na esperança de que outros se possam sentir impelidos a ler esta maravilha da literatura açoriana.
24 - NAMOROS DE JANELA BAIXA
“No tocante às raparigas casadoiras, era demais tamanha aperreação; pareciam freiras arrochadas no convento da casa; tudo quanto passa das marcas não dá muito certo; já lá diziam os antigos, com alguma razão, quem muito aperta, pouco arrocha; aperreadas dentro de quatro paredes durante dia e noite, só tinham licença de aparecer um nico à janela nas tardes pasmadas dos domingos e dias santos e, mesmo assim, nada de rédea solta, que as coriscas das mães eram umas cegonas, sempre de olho arregalado e nariz empinado, a farejar se havia mouro na costa, não fosse algum mais manhoso comer-lhe a filha de longe com olhares cobiçosos ou dar-lhe umas palavrinhas de boca pequena; mas a Divina Providência não se deixa dormir, e não há pior semente do que a da língua; o Ti Clemente Bufão tinha duas filhas gémeas, duas belas fêmeas, e o pai “gavava-se” de que não havia nenhum “fideputa” que se consolasse de as namorar e desfrutar, isto porque de uma vez bispou um fralda cagada qualquer rondando-lhe a casa, e o rapaz não era nenhuma peste, mas o Ti Clemente achava lá na sua que nenhuma das filhas regia para ele; vai daí, ao chegar ao fundamento de que o rapaz andava mesmo arrastando a asa lá pelas suas bandas, pregou as janelas da frente, e nenhuma das raparigas se podia chegar a elas; com as janelas pregadas a sete pregos, o Ti Clemente julgava que não podia haver mais dúvidas quanto a malícias de olhos ou falas de boca pequena entre eles; enganou-se redondamente; nunca mais houve, na verdade, a mais pequenina pitada de olhares trocados nem arreganho meiguiceiro de dentes; estava o Ti Clemente mui descansado e satisfeito com o seu tèsto proceder, quando, um belo dia, a mulher lhe veio dar a saber que ambas as filhas estavam cheias como vacas quase a parir; e mais, estavam pejadas do mesmo candeeiro de folheta, “inté” se dizia, por pilhéria, que uma delas estava de barriga do Divino Espírito Santo e o certo é que um dos “chinchins” ficou mesmo com o apelido de Menino Jesus; o Ti Clemente não queria acreditar no que ouvia à mulher e subiu aos arames da ruindade; ficou de cabeça desarrematada, queria à fina força pôr uma demanda em tribunal, mas, vendo que pouco ou nada amanhava, a não ser consumição e falatório ainda mais grande, pois o rapaz devia casamento às duas e só com uma se podia casar; com o desgosto, pegou o Ti Clemente em si e embarcou para a terra da América; uma das gémeas casou mais tarde com o rapaz que a tinha enganado, os pequenos tratavam-se por irmãos, chegando a zoar pela freguesia que aquilo era uma noite com uma e outra com a outra, o jogo da vez e outra, como no do pião - uma grande escândula que aconteceu na freguesia e neste ponto dou razão aos antigos quando diziam que quem muito aperta, pouco arrocha; se as raparigas tinham derriço que principiava nas festas do Divino ou nas da Senhora da Boa Viagem, penavam os olhos da cara para darem dois dedos de conversa com o noivo, que andava numa arredouça, para baixo e para cima, ou, “intance”, se as pernas pediam descanso, ia servindo de espeque a alguma parede ali ao pé, na mira de uma ocasião mais coisa e tal para despejar a saquinha dos sentimentos; as mais das vezes, era trabalho botado ao vento, e o rapaz ficava mais brabo que o mar das Calhetas, quando, por riba, lhe sopra o mata-vacas e não havia outro remédio senão esperar com paciência pelo Domingo que vinha […].” (págs. 129, 130) (continua)
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